A MOEDA DE CÉSAR E A DESOBEDIÊNCIA CIVIL
R.M. MENEZES
Dizem-lhe eles: De César. Então ele lhes disse: Dai pois a
César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.
Mateus 22:21
A face do imperador romano cunhado na moeda é uma clara
mensagem que a soberania política vigente do poder era de César. O domínio
romano pela palestina antiga era algo marcante e de forte presença política e
militar. A politica expansionista romana até certo ponto dava liberdade
religiosa aos territórios conquistados, no caso do contexto, não havia grave
interferência do Estado nas questões religiosas dos judeus. Estes pagavam o seu
dízimo religioso e o tributo estatal.
Entre judeus e romanos havia uma convivência relativamente
pacífica. O templo judaico funcionava normalmente neste contexto, devoções a
Deus eram realizadas e tributos ao império também.
Podemos extrair até aqui que há um principio estabelecido
nesta época, que é obediência ao poder estatal até o limite o qual invade os
direitos de consciência que possa impedir que as pessoas adorem e sirvam a Deus
livremente. A ordem social e a liberdade dependiam desse princípio, nos tempos
de Jesus, e hoje, por que não?
Em Mateus 22, os fariseus se juntaram aos herodianos, um
partido judaico mais leal a César, embora opostos se juntaram para colocar uma
armadilha para o Senhor Jesus Cristo. Mas o Senhor conhece a maldade do coração
humano por dentro, no mais profundo conhecimento e sabia que se tratava de uma
armadilha montada por hipócritas. Cristo ensinou que a religião cristã não é
inimiga do governo civil em si. Que deveria haver tributo devido ao culto a
Deus e tributo a César, mas que fazendo isso ninguém estava livre de outras
obrigações, da responsabilidade de piedade e justiça da Lei de Deus. Não era
somente dar o tributo, mas dar o coração; a vida por Deus e para Deus. Esta é a
grande aplicação do texto.
De modo implícito no texto podemos retirar algumas lições,
por exemplo, como obedecer a Deus sem desobedecer a César? Ou como obedecer a
César sem desobedecer a Deus? São questões naturais que surgem. Os apóstolos
Paulo e Pedro ensinaram que sujeição aos magistrados civis não é inconsistente
com o temor a Deus. A quem honra, honra. E a sabedoria pesa todas as coisas.
O que diz o apóstolo Paulo:
Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais, pois
não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que existem foram por
ele estabelecidas.
Portanto, aquele que se rebela contra a autoridade está se
colocando contra o que Deus instituiu, e aqueles que assim procedem trazem
condenação sobre si mesmos.
Romanos 13:1,2 (NVI)
As autoridades derivam de Deus. O dever de obediência a Deus
é absoluto, mas o dever de obediência aos poderes humanos é relativo. A obediência
ao Estado é uma questão aberta, se há legitimidade perante Deus ou não. Importa
sempre escolher obedecer a Deus. Quando não há conflitos de direitos e deveres
devemos obediência total aos poderes humanos.
Um exemplo, na Inglaterra no século XVII houve um conflito
de obrigações e decisões que envolvia a igreja, o rei e o parlamento. E o parlamento
e a igreja protestante desobedeceram ao rei. Aqui, neste caso houve uma consciência
coletiva por parte do parlamento e igreja em desobedecer. Mas há episódios de consciência
individual de desobediência, o caso de alguns profetas do Antigo Testamento e
dos mártires da Igreja. A consciência cativa à Palavra de Deus está acima até
da própria vida.
A consciência individual ou coletiva deve ser guiada pela
Palavra de Deus e não ser juiz em causa própria. A desobediência civil nunca
deverá ser entendida como anarquia.
Quando o Senhor Jesus Cristo foi preso pelo poder civil, e
injustamente julgado e condenado, nosso Senhor não fez nenhuma resistência. Não
só isso, mas quando a resistência foi feita em seu nome Ele repreendeu o
discípulo que tinha usado a espada. O Senhor teria que cumprir todo desígnio de
sua missão redentora, e nada poderia impedir. -- Ou pensas tu que eu não
poderia agora orar a meu Pai, e que ele não me daria mais de doze legiões de
anjos? (Mateus 26:53). -- Disse-lhe, pois, Pilatos: Não me falas a mim? Não
sabes tu que tenho poder para te crucificar e tenho poder para te soltar? Respondeu
Jesus: Nenhum poder terias contra mim, se de cima não te fosse dado... (João
19:10,11).
Não há poder, tirânico ou democrático que não esteja sujeito
ao poder de Deus. Ele mesmo controla a história e conduz TUDO segundo seu
decreto. Deus colocou sua Lei gravada no coração de suas criaturas humanas. Todo
sistema humano geralmente recompensa a virtude e pune o erro, em maior ou menos
grau. Todo governo moral estabelecido pune a injustiça razoavelmente. Os homens
são instrumentos de Deus, queiram ou não queiram.
A providência e o governo soberano de Deus, o Senhor da
história usa a instrumentalidade humana e social para trazer benefícios para a
sociedade, há toda uma história e evolução das leis civis na ciência do
direito. Deus realiza seu governo moral de muitas formas em todas as épocas.
Isto é claramente demonstrável.
O apóstolo Paulo em Romanos 13 exorta os cristãos à piedade
e justiça, deveres para com Deus em devoção e bondade fraternal, e isto inclui
sujeição aos governantes civis e os deveres de justiça e fazer o bem. Esta
carta circulou não em qualquer localidade, mas em Roma, a capital do império,
um governo idólatra, mas que se devia pagar impostos e prestar obediência, que
havia leis razoáveis que davam permissão para liberdade religiosa em fases
distintas da história do império romano, em períodos de não perseguição. O
apóstolo Paulo enfatizou aos romanos que deveria respeitar o império.
Como era a Síria moderna, há pouco tempo. Um país de maioria
muçulmana e que a minoria cristã podia viver em certa tranquilidade antes da
guerra atual. Como hoje não há mais autoridade legal nem ordem, mas um intenso
conflito, os cristãos têm duas opções, fugir ou combater. Certamente há uma
desobediência civil por parte dos cristãos na Síria.
A vontade de Deus é que haja magistrados para resguardar a
paz das sociedades. E sua mão é quem dirige todo poder. Deus é o governador
universal. Mesmo que os magistrados não creiam em Deus. Não há poder senão de
Deus. É Deus a origem de todo poder.
Este princípio sendo distorcido e usado por poderes tirânicos
torna homens em deuses. Muitos reis se apoderaram dessa prerrogativa e a distorceram
para se tornarem piores governantes, em nome de Deus.
Há casos em que o mais justo é resistir às leis injustas. Não
ha neutralidade moral e os cristãos devem se posicionar contra injustiças, a
exemplo do aborto (uma questão atual) e outros temas.
Na antiguidade, quando qualquer império ordenava a adoração
de ídolos o que podia fazer o povo de Deus? Recusar a submissão ou desobedecer
a Deus.
William Carey, conhecido como o “pai das missões modernas”,
no século XIX, em missão na Índia, um país com leis estranhas como cremar viva
a viúva juntamente com o cadáver do seu esposo. William Carey como missionário
cristão não se submeteu a esta cultura e tradição, por mais antiga que fosse, e
com muito esforço, influência adquirida e, sobretudo pela providência de Deus,
a lei foi abolida. O mesmo aconteceu com a escravidão nos países cristãos e
outras leis.
O princípio geral em Romanos 13 deve visto deste modo, que devemos
obedecer todas as coisas que não são contrárias à Lei de Deus. Pois importa em
primeiro lugar obedecer a Deus.
O que diz o apóstolo Pedro:
Sujeitai-vos, pois, a toda a ordenação humana por amor do
Senhor; quer ao rei, como superior;
Quer aos governadores, como por ele enviados para castigo
dos malfeitores, e para louvor dos que fazem o bem.
Porque assim é a vontade de Deus, que, fazendo bem, tapeis a
boca à ignorância dos homens insensatos;
Como livres, e não tendo a liberdade por cobertura da
malícia, mas como servos de Deus.
Honrai a todos. Amai a fraternidade. Temei a Deus. Honrai ao
rei.
1 Pedro 2:13-17
Os cristãos devem esforçar-se, em todas as relações, para se
comportar corretamente, para que não tornem a sua liberdade um pretexto para
qualquer perversidade, injustiça ou negligência do dever; Mas devem lembrar-se
de que são servos de Deus.
Segundo Calvino, por causa de sua origem divina, as autoridades
civis têm o direito à obediência de todos os homens em geral e dos cristãos
especialmente. Os magistrados são instituídos por Deus, investidos de
autoridade divina e representam a pessoa de Deus em cujo nome agem. Deus é
soberano absoluto sobre todas as coisas. Um grupo que estava no cenário da
Reforma do século XVI e que provocou muitos problemas com o movimento reformado
por não respeitar a obediência civil legitima foi o ensino anabatista. Este
grupo sofreu retaliações por parte de protestantes e católicos.
Algo muito importante é que o dever de submissão às
autoridades civis não é ilimitado. Contra os governos injustos é preciso agir
pelos meios legais que estão na mão do povo, se houver meios legais. Em último
caso os cristãos devem derrubar um governo como numa guerra civil, a exemplo da
Inglaterra do século XVII. Quando se vive numa democracia há mecanismos legais
para a derrubada de seu governo. A desobediência
civil a um governo injusto, para o cristão, não é apenas um direito, é um
dever.
Na Confissão de Fé de Westminster, capítulo XX, sobre a
Liberdade de Consciência, resume-se que: Deus é o único Senhor da consciência,
sua vontade é revelada nas Escrituras e requerer ou impor obediência às
doutrinas dos homens é traição contra Deus. Ou seja, a obediência tem limites.
No capítulo XXIII do mesmo documento entende-se que, o governo tem sua origem
em Deus e não no povo.
Há um comentário do Rev. Onezio figueiredo sobre os
capítulos XX e XXIII da Confissão de Fé de Westminster, bem apropriado e
colocado:
“ -- Liberdade para a obediência civil -- O eleito de Deus,
salvo em e por Cristo Jesus, possui dupla cidadania: a civil e a espiritual. O
súdito fiel do Rei eterno é, consequentemente, bom cidadão de seu país, onde
Deus o colocou como sua testemunha. O mesmo Senhor do reino dos céus, para o qual
elegeu, chamou e salvou os seus regenerados, é também o criador e o gerente da história,
que escolhe governantes e os tira do poder; cria nações e as destrói, conforme seus
propósitos. Cristo governa os seus por meio das Escrituras Sagradas, a Palavra
de Deus, pelo ministério do Espírito Santo no interior de cada redimido e por
meio de sua Igreja (...) O crente, portanto, sujeita-se às leis concedidas por
Deus às nações e se submete aos mandamentos do Salvador. Legítimas são as
penalidades que o Estado impõe aos infratores; justas, as disciplinas que a Igreja
aplica aos ofensores de Deus, aos corruptores de sua palavra e aos detratores
do corpo de Cristo. Eis porque ao servo de Deus impõem-se submissão e
obediência às autoridades civis e eclesiásticas: Sujeitai-vos a toda
instituição humana por causa do Senhor, quer seja ao rei, como soberano, quer
às autoridades, como enviadas por ele, tanto para castigo dos malfeitores como
para louvor dos que praticam o bem ( I Pe 2. 13,14 ). Como livres que sois, não
usando, todavia, a liberdade por pretexto da malícia, mas vivendo como servos
de Deus ( I Pe 2. 16 ).
(...)
O Servo de Deus possui dupla cidadania, a celeste e a
terrestre. A ênfase na cidadania celestial não desqualifica nem elimina a
cívica; pelo contrário, qualifica-a e a intensifica. O bom cristão é, por vias
consequenciais, melhor cidadão que o mau cristão. Quem obedece e serve a Deus
com humildade e fidelidade, obedece e serve ao seu país com honestidade e
honrada civilidade. Somos libertos para o exercício do bem, não para a prática
do mal. Somos livres para servir a Deus, não a nós mesmos, ao mundo e ao mal.
(...)
O cristão, em decorrência da dupla cidadania, a terrestre e
a celeste, está sob jurisdição das autoridades civis e sob controle do Criador.
Cada país tem sua constituição federal, mas a Igreja deixa-se gerir pelas Escrituras
Sagradas, sua regra de fé e norma de comportamento”.
Primeiramente somos povo de Deus, posteriormente cidadãos.
Qualquer ato de desobediência civil, familiar, eclesiástica ou outro ato
social, é também uma ofensa, a não ser que esteja obedecendo primeiro a Deus.
Como no caso dos Reformadores do século XVI, que desobedeceram a Igreja
Católica Romana, por sua corrupção desenfreada.
Uma coisa é certa em toda história de uma sociedade humana,
a obediência ou desobediência sempre carregam em si consequências e resultados
históricos. O mundo nunca será melhor com desobediência ilegítima e anarquia. O
mal não pode produzir uma sociedade boa.
A desobediência civil fundamentada na verdade e na justiça é
uma coisa, uma desobediência civil que coloca o homem acima da vontade de Deus
é anarquia. Como bem disse Rushdoony: “A desobediência é um dever moral quando
se obedece a Deus antes de obedecer aos homens”.
Jesus Cristo em Mateus 22 aplicou a justiça que seus
ouvintes deveriam obedecer ambos os tributos. A resposta de Cristo na ocasião
não foi a desobediência civil ou uma revolução. Pagar impostos é um aspecto
pequeno de nossa obrigação como cidadão. O mais importante é render nossa
vontade a Deus em tudo, reconhecer Deus como nosso Salvador e Senhor.
E mesmo Jesus Cristo dando a resposta mais justa e sábia,
ainda foi acusado de rebelde contra César: “E começaram a acusá-lo, dizendo:
Havemos achado este pervertendo a nação, proibindo dar o tributo a César, e
dizendo que ele mesmo é Cristo, o rei”. (Lucas 23:2). Mentirosos e hipócritas!
Sua resposta havia acabado com a armadilha deles, Jesus ensinou que se devia
pagar o que era devido a César e a Deus. Os inimigos de Deus são mentirosos e
não raramente elaboram leis que são contra a moral de Deus. A estes não se deve
obedecer.