Calvino contra a Astrologia: Um dos debates quentes do
século XVI
Por Raniere Menezes
A astrologia é uma antiga tradição. Para muitos no século
XVI a astrologia era entendida também como um juízo de Deus anunciado pelas
estrelas. E é uma das tradições mais antigas da humanidade, e ainda causa de
controvérsias e admiração. Há relatos milenares entre os caldeus, egípcios,
mesopotâmios e em sociedades mais recentes na linha do tempo da história.
Não confundir astrologia com astronomia. O desenvolvimento
da astronomia cientifica contribuiu para enriquecer de informações a
astrologia, embora distintas. Depois de Ptolomeu a astronomia se desenvolveu
notavelmente dentro do islã (Calvino reconheceu isto). No Renascimento
destaca-se o astrônomo Galileu, com o uso do telescópio. A astronomia
aproximou-se cada vez mais da matemática, que permitia calcular órbita,
distâncias etc. Grandes astrônomos merecem destaque como Copérnico, Brahe,
Galileu, Kepler e outros. Astrologia tem a ver com horóscopo, e astronomia é
ciência.
Até hoje os noticiários destacam comentários de astrólogos
sobre eclipses e passagens de cometas. De fato, corpos celestes são
fascinantes. O mapeamento do céu sempre foi usado para reconhecer estações,
navegação, marés, tempo de semear, de colher e outras observações. As
conjecturas da astrologia relacionam-se e são fortalecidas por histórias
mitológicas que enriquecem as imaginações especulativas. O homem tem desejo de
conhecer o futuro, prever desastres, epidemias, mortes e outros acontecimentos.
Na França do século XVI as igrejas discutiam sobre a
astrologia como hoje discutimos sobre a influência do entretenimento em nossas
igrejas. Muitos consideram coisa normal. João Calvino combatia teologicamente
qualquer “causa-efeito” relacionado às estrelas do céu. As estrelas não afetam
em nada eventos humanos trágicos ou felizes, afirmava. O cotidiano das pessoas
não tem nada a ver com astrologia. Teologicamente só se deve reconhecer as
predeterminações de Deus em seus Decretos Eternos.
A astrologia não tem nem base cientifica nem teológica, é
biblicamente improcedente. No século XVI a astrologia era usada até
judicialmente (pasme!), para distinguir o certo do errado, para julgar
indivíduos. Em 1548, Calvino fez uma advertência contra a astrologia judicial.
O texto de Calvino em Genebra foi publicado pelo editor Jean Girard em 1549 sob
o título "Tratado ou advertência contra a astrologia judiciária e outras
curiosidades que influenciam o mundo hoje”. Republicado em 1842 para a biblioteca
Charles Gosselin, em um volume dedicado às obras de Calvino. Mais recentemente,
Olivier Millet editou uma publicação anotada em 1985.
O movimento da Reforma Protestante entrou numa batalha
contra a astrologia no século XVI. Neste tempo, em quase todos os círculos
sociais, o povo gostava de horóscopo, almanaques, "généthliaques"
(espécie de mapa astral, peças escritas para o nascimento de uma criança). Com
o advento da impressão em papel, a distribuição de literatura deu mais força a
astrologia.
Nesse contexto cultural Calvino usou de toda energia e
ironia para escrever seu Tratado contra a astrologia. O povo simples era alvo
fácil dos horóscopos, mas também gente letrada e influente. E a igreja sofreu
influência desses escritos. Calvino citou a mesma passagem que o Apóstolo Paulo
escreveu aos Gálatas 1.6-7:
Maravilho-me de que tão depressa passásseis daquele que vos
chamou à graça de Cristo para outro evangelho; O qual não é outro, mas há
alguns que vos inquietam e querem transtornar o evangelho de Cristo.
Calvino comentou que havia uma curiosidade louca de
adivinhar o futuro pelas estrelas por parte de seus contemporâneos. E que isso
não passava de uma superstição diabólica e perniciosa para a humanidade. E que
havia gente com boas intenções quase enfeitiçada.
Ele não condenava a astronomia, pelo contrário, dizia que o
conhecimento astronômico deve ser reconhecido, o conhecimento da ordem natural,
mas a especulação é condenada. As estrelas podem ser sinais para nos mostrar a
estação da sementeira ou plantação, mas é especulação consultar as estrelas
para usar um vestido novo, ou fazer negócios num determinado dia e outro não,
criticava o teólogo francês.
Calvino reprovava a prática de "généthliaques
prédéterministes", um tipo de mapa astral. Ele questionava: “Pessoas que
nasceram no mesmo dia teriam a mesma vida? Gêmeos tem o mesmo destino?” Ele
chamava os astrólogos de os "fazedores" de horóscopos. Possivelmente
o que mais incomodava Calvino é que os astrólogos justificavam o seu
determinismo como sendo juízo de Deus. E também, diziam, que havia semelhança
da prática deles com a carta do Apocalipse, que contém sinais do céu e
profecias futurísticas. Calvino rebatia que profecias não tem relação com as
estrelas.
O teólogo argumentava: “Quando José previu a fome do Egito
havia alguma relação com as estrelas? Pelo contrário, havia uma revelação
miraculosa”. Concluiu que, os egípcios sondavam as estrelas como meio de
adivinhação e não sabiam da fome que viria. E Deus advertiu Faraó num sonho e
José revelou seu sonho, mas nenhum astrólogo conseguiu prever o futuro. As
estrelas não têm domínio sobre nós, sentenciava o reformador. Usou outro
exemplo, o de Jeremias. Deus revelou ao profeta Jeremias que não devemos ser
como os pagãos, temendo os sinais do céu. Jeremias exortou seu povo a confiar
na providência divina e não ser seduzido com as loucuras dos caldeus e
egípcios.
João Calvino realçava que o homem carrega todos os males
dentro de si. Seus pecados que acendem a ira de Deus, atraindo sobre si
guerras, fome, granizo, geada etc....e mais: aqueles que buscam orientação e
felicidade através da previsão das estrelas retiram a confiança em Deus. Ao
crente cabe descansar no conhecimento e nas mãos de Deus, e será abençoado por
ele, servindo-o de boa consciência. Este é o caminho do discernimento e
sabedoria apontado pelo teólogo.
Há o exemplo dos Efésios que em Atos é relatado. Aqueles que
querem seguir o Evangelho devem queimar seus livros mágicos, mesmo que valham
uma fortuna. -- Atos 19.19:
Também muitos dos que seguiam artes mágicas trouxeram os
seus livros, e os queimaram na presença de todos e, feita a conta do seu preço,
acharam que montava a cinquenta mil peças de prata.
Calvino aconselha em seu Tratado que se mantenha o
inestimável tesouro do Evangelho em boa consciência, pois o temor de Deus é
sabedoria contra todos os erros. Deus tem nos ensinado como santificar-nos e
servi-lo humildemente. Que os letrados se engajem em bons e úteis estudos e não
em curiosidades frívolas, que servem apenas para divertir os tolos. O nosso
propósito é o temor de Deus.
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Fonte: museeprotestant.org