Conta-se que um grupo de americanos que estava em Londres no século passado foi ouvir um famoso pregador, contemporâneo de Spurgeon. Ao saírem da reunião comentaram: “que grande pregador é o Dr. Fulano!” Posteriormente assistiram a uma pregação de Spurgeon e saíram dizendo: “que grande salvador é o Senhor Jesus!” É a Cristo, unicamente, que a igreja deve exaltar.
Lamentavelmente a igreja tem se apoiado em lideranças personalistas, mesmo que de natureza benéfica. Homens têm sido colocados em evidência junto com Cristo e a mensagem do Evangelho, e quando esses homens caem a credibilidade da mensagem cai junto. A prática tem demonstrado que é preciso despersonalizar a igreja. O Evangelho não necessita da autoridade de homens para se firmar. Ele tem autoridade por si.
Há igrejas em que somente após o povo estar acomodado é que o pastor ou pastores entram em processional pelo templo. Em algumas, o povo se levanta para acompanhar e às vezes até aplaudir o “homem de Deus” que está entrando.
Até mesmo nos grandes reformadores, Lutero e Calvino, podemos encontrar essas tendências. Lutero, embora tenha renunciado aos seus votos monásticos, “apegou-se tenazmente a seu professorado e a seu grau de doutor”, obtido na Igreja Católica Romana. (CITADO)
Já se falou e escreveu muito sobre como o pastor pode ser solitário. E, por quê? Primeiro, porque o sistema é falho, humano e não divino. Não era para ser assim. Segundo, essa notória “solidão do ofício” parece ser um subproduto de duas inclinações humanas, a de ser idolatrado e a de idolatrar. De fato, os homens parecem necessitar da figura de um homem forte a quem devotam lealdade, por quem lutam ou a quem imitam. Os artistas têm os seus inevitáveis fãs-clubes; e, mesmo em nosso meio, não deixam de existir as multidões de seguidores de cantores e dos grandes pregadores. Por outro lado, essas pessoas que ficam em evidência, mesmo com as melhores intenções, no decorrer de suas carreiras parecem enredar-se nas sutis armadilhas que os holofotes trazem. E, se no início se sentem desconfortáveis depois se acostumam e, mais adiante passam a gostar dos paparicos, dos autógrafos, das atenções especiais, do tratamento diferente, da devoção exagerada.
O que aconteceu com esses pastores demonstra que a natureza humana, mesmo nos nossos melhores representantes, pode ser perigosamente susceptível às influências da fama, da honraria exagerada e da admiração dos homens. Por isso, cada vez que um mero homem – por melhor que seja – é colocado, sozinho, em posição de proeminência, surgem ocasiões de tentação.
Vemos na Bíblia um diácono batizando (At 8.12, 36-38: O eunuco pergunta a Felipe: que impede que seja eu batizado? Se vivesse hoje Felipe responderia: não posso batizar-te, somente um ministro ordenado pode..), um “mero” discípulo, sem nenhum cargo conhecido batiza aquele que viria a ser o apóstolo Paulo (At 9.10-18).
Se o “pastor” não é um sacerdote porque sem ele não pode haver batismo e celebração da ceia? Por que somente o pastor pode impetrar a chamada “bênção apostólica” que é simplesmente o fecho da 2ª carta aos Coríntios? Parece que a “bênção apostólica” se tornou um 3º sacramento criado com a finalidade de marcar a distância entre o reverendo e os “leigos” (aliás, se a bênção é “apostólica”, homem nenhum tem o direito de pronunciá-la atualmente).
Lutero considerava que todo cristão é um ministro e que a cerimônia de ordenação era “meramente a forma pública pela qual alguém é comissionado mediante a oração, as Escrituras e a imposição de mãos, a fim de servir à congregação.” As funções sacerdotais são privilégio de todos os crentes e “não a prerrogativa de uma casta seleta de homens santos”. “Lutero enumerou sete direitos que pertencem a toda a igreja: pregar a Palavra de Deus, batizar, celebrar a Santa Comunhão, carregar “as chaves”, orar pelos outros, fazer sacrifícios, julgar a doutrina”. (CITADO)
O desejo de primazia não é cristão. Paulo afirma que desejar o episcopado é algo bom (1Tm. 3.1). Mas este é um episcopado cristão onde indivíduo sobressai por servir (Mt 20.26), permanecendo sempre submisso a outros. O presbítero João escrevendo a Gaio (3 Jo 9), informa-nos acerca de um tal de Diótrefes, (“que gosta de exercer a primazia entre eles”) que não lhe dava acolhida, proferia palavras maliciosas contra ele e expulsava da igreja os irmãos que desejavam acolher os seus mensageiros. Após esse relato conclui: “não imites o que é mau” (v.11). Parece haver dois procedimentos errados relatados nesta passagem: O primeiro é o desejo de primazia exercido por Diótrefes; o segundo é a passividade dos demais, que não exerceram sua autoridade para inibir com firmeza a este que acabou por deixar de ser presbítero para se transformar num tirano.
Esta passividade tem sido estimulada por muitos pastores, principalmente aqueles que gostam “exercer autoridade e dominar” (veja Mateus 20.25-26). Usando indevidamente a figura bíblica da “ovelha” e do “rebanho”, estimulam nos membros de suas congregações as características negativas deste animal. Afirmam que ovelha é mansa, não berra; o pastor sabe quais são os lobos disfarçados de ovelhas dando com o cajado na cabeça de todos – a ovelha não reagirá. Quem reage é lobo. Dessa forma afastam aqueles que poderiam contestar sua “autoridade” e seus erros. Já ouvi de um antigo pastor, zeloso de sua autoridade, a afirmação de que “ovelha é burra”. Ele se referia aos membros da igreja! De fato a ovelha (o animal) é burra, enxerga pouco, não sabe se defender, erra freqüentemente o caminho… serão por essas características que o verdadeiro líder cristão gostaria que sua congregação fosse conhecida?
Efésios 4.11-16 mostra que a liderança da igreja foi constituída por Deus com a finalidade de conduzir os eleitos ao “pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo”. Aí não há nada da ingenuidade, da burrice e da passividade característicos do animal. Em última análise, a finalidade da liderança cristã é tornar-se desnecessária, pois quando todos chegarem à perfeita varonilidade e à medida da estatura da plenitude de Cristo, não precisarão de ninguém para guiá-los. Evidentemente isso só acontecerá (inclusive com os líderes) na glória. Mas este é o alvo: sermos como Cristo (veja também Rm. 8.29; 2Co. 3.18). Que glória para uma congregação ouvir o que Paulo disse aos Romanos: “E certo estou, meus irmãos, sim, eu mesmo, a vosso respeito, de que estais possuídos de bondade, cheios de todo o conhecimento, aptos para vos admoestardes uns aos outros” (15.14). Se uma igreja permanece por anos com membros portando-se como meninos (Ef 4.14), sem crescimento (Ef 4.15), algo está errado.
Pedro, (1Pe. 5.1), exorta: “pastoreai (pastoreai vós: plural!) o rebanho de Deus… não como dominadores dos que vos foram confiados, antes, tornando-vos (plural) modelos do rebanho”. Vejo aqui que não há como compararmos o modelo de liderança encontrado em qualquer outra instituição (a hierarquia militar, por exemplo) com a igreja de Deus. Os presbíteros devem se abster de procurar serem obedecidos porque são “os chefes”. Eles são investidos de autoridade? Sim. Mas uma autoridade de natureza diferente da do mundo, uma autoridade que deve ser obedecida por se tornar modelo. “Mas Jesus lhes disse: os reis dos povos dominam sobre eles, e os que exercem autoridade são chamados benfeitores. Não é assim entre vós”. (Mt. 20, Mc. 10, Lc. 22).
Como aplicar esses princípios dentro de um sistema colegiado de governo? Alguém se destacará por uma pregação eloqüente, outro pela sabedoria e conhecimento bíblicoteológico, outro por sua capacidade administrativa; uns serão mais comunicativos, outros mais reflexivos. Mas todos deverão se submeter, individualmente, ao grupo. Se cada presbítero, individualmente, não é capaz de ser liderado, como será capaz de liderar adequadamente?
Aristóteles ao teorizar sobre as formas de governo citou 3: monárquico (governo de um só, vitalício; de monos, um), aristocrático (governo de uma elite; de aristos, melhor + krateo, dono, governador) e democrático (governo escolhido pela maioria) e alertou para o fato de que todos podem se deturpar: a monarquia pode se transformar em tirania; a aristocracia em oligarquia e auto-perpetuação e a democracia, em demagogia. Também as igrejas podem se desviar das formas de governo que teoricamente adotam: uma igreja batista pode transferir grande parte da autoridade da assembléia para o pastor; os presbíteros de uma igreja presbiteriana podem se tornar meramente um grupo de auxiliares do pastor; um presbitério pode ser submisso às imposições de um líder mais carismático.
Um paralelo esclarecedor são as ditaduras. Em muitas delas os congressos permanecem funcionando, o que lhes dá uma aparência de democracia. Na prática eles existem somente para endossar as diretrizes do “homem forte”. Exemplo típico eram os congressos dos países comunistas onde o mais comum eram as votações unânimes: ai de quem discordasse! Isso deveria ser suficiente para mostrar aos cristãos que as raízes do pecado estão ativas em todos nós e que tudo o que fazemos tende a se corromper com o tempo, até nas igrejas dos santos. Mesmo as comunidades cristãs podem se degenerar a tal ponto que suas reuniões já não sejam para melhor e sim para pior (1Co. 11.17).
Pode-se acrescentar a estes o “governo monárquico”, onde um líder carismático se proclama como “o ungido de Deus”, muitas vezes alegando que recebeu uma “revelação” divina e detém o poder normalmente de forma incontestável e vitalícia. Igrejas assim estão largamente afastadas dos princípios da Reforma e não creio que devam ser chamadas de protestantes.
Extraído do artigo: Um sistema de governo presbiteriano, por Túlio César Costa Leite, Presbítero da Igreja Reformada Presbiteriana em Maricá (RJ). Para ler na íntegra clique aqui.